sexta-feira, 18 de março de 2011

A ideologia e as armadilhas do relativismo

Por Leon K.
Licenciando em Ciências Sociais (1º Período)
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Houve um cara que escreveu, pouco antes de ter suas cinzas jogadas às margens do Rio Araguaia, que o Século XXI seria de sombras e de luzes, no início mais sombras do que luzes. O Século XX também foi um tempo em que reinou essa dicotomia - e, infelizmente, também neste caso, mais sombras permearam aquele período. Duas guerras, conflitos localizados, epidemias, ditaduras, crises econômicas entre outras chagas são as marcas indeléveis e palpáveis daquela era. Mas ao lado de todas estas, havia uma outra, que não se vê, que não se nota, e que, nos casos extremos, chegam até a negar sua existência, mas que, no final das contas, pretendia legitimar todas as anteriores: esta chaga chama-se ideologia.

John B. Thompson, professor de Sociologia da Universidade de Cambridge, caracteriza a ideologia como as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação, seguindo a linha marxista. Ora, vá lá que Karl Marx não seja o criador do termo, porém os seus escritos sobre ideologia, produzidos em parceria com Friedrich Engels já nos anos 1840, lançariam as bases para praticamente todos os estudos posteriores. A definição de Thompson não foge a regra, embora busque criticá-la, de uma maneira que não conviria explicar neste momento. Para Marx, a ideologia tem este propósito efetivo: ser instrumento de dominação de uma classe sobre outra, agindo por meio da transformação da realidade, da alienação da consciência humana e de um pretenso convencimento.

Vale aqui fazer um destaque necessário: aquela ideologia que conhecemos e que o Cazuza canta em seus versos esgoelados (Ideologia, eu quero uma pra viver) não tem nada a ver com esta de que falamos. Na verdade, a ideologia de Cazuza nem existe de fato. É apenas um termo cunhado para um conjunto de ideias que podem caracterizar alguém como comunista, socialista, ambientalista, et cetera. É um termo genérico, cujo significado talvez se encaixasse mais em uma palavra como "idéario".

A ideologia não é um fenômeno isolado dos demais que nos acometem cotidianamente. Ela está interligada a todo e qualquer outro, e nasce de um processo histórico muito particular; o processo de ascenção e, por assim dizer, consolidação do modo de produção capitalista. A tomada do poder político pela burguesia e o fim da trajetória da Igreja como uma das instituições dominantes gera uma nova condição de dominação, que não mais se sustenta pelo discurso teológico ou mitológico. Com o Renascimento, a religião não pode mais ser o mecanismo de dominação cultural, simbólica, ou qualquer termo que queiram dar. Vale lembrar que a noção de ideologia já existia mesmo antes do surgimento da burguesia como o conjunto das ideias dominantes, mas só se torna ideologia propriamente dita quando se livra da matriz religiosa, centrando-se no homem e nas instituições que favorecem isto, como a Escola, o Estado, a Justiça e a própria noção de Pátria. O capitalismo auxiliou essa tendência a partir do momento em que alarga, em si, a divisão entre os que trabalham manualmente e os que trabalham intelectualmente. É fato que isso já existia, quando, no passado, os sacerdotes se restringiam à atividade intelectual, mas neste novo momento essa separação se amplia, criando um abismo entre os que produzem - sobretudo operários, camponeses - e os que pensam - professores, artistas, cientistas. O alargamento é constante, de maneira que cada categoria torna-se gradativamente mais distante da outra, o que resulta na alienação daqueles que trabalham com o intelecto (os trabalhadores manuais, claro, também sofrem dessa alienação, no entanto, não são foco deste estudo). Eles passam, então, a admitir que o pensamento e a consciência estão definitivamente dissociados do trabalho material. Acreditam, por exemplo, que a arte pode existir por si, que a Filosofia pode existir por si. Essa autonomia oferecida às ideias fatalmente leva à noção de que elas servem não somente para explicar a realidade, mas para produzí-la.

Não é à toa, portanto, que vemos as pessoas acreditarem que as ideias podem mudar o mundo. É a síntese da ideologia: a crença de que as ideias são autônomas.

Os ideólogos, de um modo geral, foram sempre representantes da elite. Nas formações sociais capitalistas, lembramos alguns como juristas, filósofos, além dos já citados professores e cientistas. Sendo membros da elite, toda sua produção intelectual poderia ser sintetizada na defesa da própria condição de elite - sendo, esta defesa, muitas vezes, velada - e, portanto, na manutenção de todo o corpo restante, ou seja, a massa trabalhadora, na condição de dominados. Estes trabalhadores, naturalmente, absorviam, das maneiras mais diversas possíveis - através das artes, da escola, das simples leituras de jornal - o discurso dominante, acreditando, assim, que a elite econômica existe não por circunstâncias irresolvidas, mas por mérito próprio. O poder da ideologia é tamanho que mesmo a mobilidade social (muito restrita) que coloca pessoas de origem pobre em postos de relevância intelectual não é suficiente para criar uma contraposição ao pensamento dominante.

Neste primeiro texto, estou tentando apresentar o surgimento da ideologia e suas manifestações mais gerais. No entanto, no futuro isto pode ser trabalhado na análise de temas específicos, como a reserva de vagas para negros/estudantes de escola públicas nas universidades, os movimentos de libertação da América Latina, a visão comum acerca de organizações como o MST, entre outros casos.

Por fim, lembro e reafirmo que as ideias não mudam o mundo. Apesar de que não é o que pensam as correntes preponderantes hoje. Mesmo algumas correntes marxistas, abrigados na pedagogia, por exemplo, cometem o erro de crer nesta sentença. Buscam todas as formas de abordagem para tentar fazer da Escola/Universidade um ambiente gerador de transformação social. É inviável, pois as bases de nossos problemas são econômicas, e não educacionais, abstratas, filosóficas. Em qualquer país capitalista, o problema primeiro é efetivamente econômico. Falarei sobre isso em outros textos.

Outras correntes que cometem o erro de supervalorizar as ideias estão agrupadas num arremedo defensor de um pretenso pós-modernismo, crentes que são numa possível ruptura que teríamos vivido com os "paradigmas" que norteavam as relações sociais diversas até, quem sabe, os anos 1980, e que estão em crescente expansão. Os pós-modernistas só não explicam que ruptura foi essa. Preferem se defender colocando em questão uma sequência de práticas que denotam uma fragmentação das perspectivas e relativização de vários princípios. Esses teóricos, como o inglês - salvo engano - David Sack ou o carioca Roberto Lobato Correia, da UFRJ - onde existe o que orgulhosamente chamam Escola do Rio -, alegam que a ciência marxista falhou em sua perspectiva de diagnosticar o conjunto da sociedade (como se a "sociedade" existisse enquanto um corpo unívoco - também falarei sobre isso no futuro) e que a questão agora reside no "homem", nas percepções "simbólicas", no "significado". Tudo passa então a ser relativizado, inclusive a própria ciência. As consequências são gravíssimas: despolitiza categorias sociais que antes buscavam se afirmar - mulheres, negros, homossexuais, deficientes -, alienando-as ainda mais, e não somente elas, mas todas as outras categorias que absorvem esse discurso, como as classes médias.

Um fator que identifica essa despolitização é o próprio costume, corriqueiro, de se encerrar discussões com a famosa e resposta: "é relativo, cada um tem sua opinião". A sentença, aparentemente desprovida de qualquer má intenção, caracteriza-se pela estúpida noção de que, tendo cada um a sua opinião, a própria verdade pode ser relativizada!

Claro, há fatores de natureza não somente econômica, mas também psicológica que explicam isso. É como um prato típico, por exemplo, restrito à apreciação daqueles que estão acostumados, e legados ao desprezo dos demais - quem no Ocidente inveja os pratos orientais exóticos recheados de baratas e gafanhotos? Vale lembrar também a frase de Einstein, irônico como sempre : o tempo é relativo, passa diferente quando se está diante de um fogão quente ou quando se está num banco de praça com uma bela rapariga sentada ao seu colo...

Quando se trata de uma discussão efetiva sobre o que se tem por verdade, porém, a nuance psicológica não vale, afinal, a realidade não pode ser relativizada. É preciso que dissociemos a noção de que a nossa crença numa verdade específica não implica na existência dela. Nós sabemos, por exemplo, que muitos estrangeiros acham que Buenos Aires é a capital do Brasil. Eles acreditam nisso; no entanto, esta crença não implica na verdade. Até mesmo Marx e Engels ironizam, no livro A Ideologia Alemã, os que relativizam a ciência, comentando sobre um homem que dizia que as pessoas só se afogavam porque acreditavam na ideia de gravidade, e que quando elas conseguissem se livrar dessa prisão psicológica, estariam livres também dos limites que a gravidade lhes impõe. Para o bom homem, a própria realidade poderia ser relativizada. Tentou, então, de todas as maneiras: alegou que o ato de cair se tratava de ilusão, de superstição, de crença religiosa adquirida, porém a realidade lhe foi impiedosa. É a mesma tentativa frustrada de todos os idealistas que hoje - consciente ou inconscientemente - repetem a mesma coisa. Entretanto, providos de ainda menos imaginação.

Livros de auxílio
Marilena Chauí, O Que é Ideologia (Ed. Brasiliense, 1980)
John B. Thompson, Ideologia e Cultura Moderna (Ed. Vozes, 2007)
Karl Marx e Friedrich Engels, A Ideologia Alemã (Ed. Martin Claret, 2005)
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Para conferir o texto original, clique aqui

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